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ANGÉLICA DE MORAES – JULHO 2001 – APRESENTAÇÃO DA EXPOSIÇÃO ´DESENHOS 1974-1982´- GALERIA SYLVIO NERY

Operário da Forma

Quais as origens da arte concreta? No Brasil, ela costuma ser situada à partir das influências do suíço Max Bill e sua escultura “Unidade Tripartida” (1948/49), premiada na 1ª Bienal de São Paulo (1951). Claro que, no mundo, tudo começou bem antes. Os historiadores de arte ortodoxos situam o início da abstração no pequeno guache pintado, em 1910, por Wassily Kandinsky. Reza a lenda que Kandinsky teria se inspirado em padrões decorativos (têxteis) do folclore russo.

De qualquer modo sob qualquer ângulo – seja a partir de matizes européias, seja como corolário de um caráter ancestral, autóctone ou universal – o concretismo brasileiro só pode ser entendido em toda sua riqueza visual e formal por meio de pioneiros como Luiz Sacilotto. Para penetrar no coração desse legado artístico é preciso visitar a obra surpreendente e vital de Sacilotto, um dos protagonistas maiores de nossa história visual.

Aracy Amaral, no livro Arte Construtiva no Brasil: Coleção Adolpho Leirner (DBA, 1998) esclarece que “a abstração geométrica no Brasil se faz presente desde início dos anos 20”. A mesma autora registra, porém, que a abstração surgia então apenas como “primeiros balbucios”, relegados a fundos de telas de composições marcadamente figurativas. Quem observar as telas que Sacilotto produzia no final dos anos 40 vai notar esses tímidos fundos abstratos, em contraste com as figuras do primeiro plano, que se libertam de um vocabulário expressionista para experimentar ecos da linguagem cubista.

A arte concreta, no seu sentido específico, só surgiu no país em 1952, com o manifesto do Grupo Ruptura. Esse texto, de importância fundamental para o desenvolvimento da arte brasileira, era uma única folha de papel, impressa em tipografia apenas em um lado e distribuída como panfleto. “A arte antiga foi grande quando foi inteligente, contudo a nossa inteligência não pode ser a de Leonardo, a história deu um salto qualitativo”, pregava o texto, situando como velhas todas as variedades e hibridações do naturalismo.

Entre os artistas que assinavam essa peremptória certidão de nascimento do concretismo estava Luiz Sacilotto, ao lado de nomes igualmente ilustres como Waldemar Cordeiro, Lothar Charroux e Geraldo de Barros. É preciso, porém, citar um personagem que projetou sua profícua presença sobre grande parte do pensamento estético da época: Mário Pedrosa e seus estudos sobre a teoria da Gestalt.

Há quem vá buscar (como o próprio Pedrosa) a irreprimível vocação do brasileiro para a ordem e a geometria nas pinturas corporais e cestaria indígenas. Ou, como bem observou Ana Mariani em suas fotos, nas fachadas e cores de uma arquitetura intuitiva remanescente no interior do país. Lina Bo Bardi e sua paixão pelo artesanato brasileiro também traria à luz dos museus complexas soluções formais de humílimos objetos feitos pela mão do povo.

Creio que não pode ser desconsiderado o fato de Sacilotto Ter origem operária. Serralheiro exímio, inventor de esquadrias de metal de rigorosa construção e mesmo de vitrais, ele teve nesse ofício a prática diária do equilíbrio de superfícies (vidros) e linhas (estruturas). Seu ateliê, de feição industriosa como seu dono, é de um operário que ama seu ofício e acaricia tanto como nas mãos quanto nos olhos os instrumentos do seu fazer. Tudo está rigorosamente no lugar. É um lugar pragmático, de oficina.

Nas longas prateleiras que ocupam, do teto ao chão, boa parte do espaço situado às costas de sua mesa de trabalho, centenas de vidros guardam pigmentos e as gradações de cor que ele prepara, numera e classifica em um caderninho de folhas amarelecidas pelo uso. São mais de 300 cores, que incluem desde terras de Siena e Kassel (sim, a cidade da Documenta produz pigmentos artísticos) até azuis e verdes belíssimos, colhidos nas jazidas a céu aberto existentes no chão ferroso das Minas Gerais. Tudo isso se transforma em telas em que as cores ora destacam, ora suavizam a geometria das composições.

Ao explorar o vasto território estético da abstração geométrica, Sacilotto fez mapas indeléveis, visualidades que se integram ao nosso olhar como um abecedário. É o que podemos observar nesta mostra. Trata-se de um conjunto de trabalhos gráficos que documentam momentos antológicos da sua obra. Momentos que deixam entrever como Sacilotto planeja e executa minuciosamente códigos projetivos ou translações e rotações de formas capazes de subverter o olhar do espectador. Capazes de seduzi-lo a um outro e mais outro olhar. Sempre saindo desses mergulhos com a sensação de descoberta provocada por um desafio: olhar outra vez e mais fundo.

Há, em algumas dessas composições sobre papel, sem dúvida, rebatimentos da optical art fundada na metade dos anos 60. Impossível olhar para trabalhos como Abstrato 236 ou Abstrato 242 sem observar a sutil compressão ou expansão de módulos que promovem volumetrias virtuais, esculpindo na superfície plana do papel ilusões de profundidade, em torções e extensões infinitas.

Essas ambigüidades de percepção são ainda mais admiráveis pelo fato de terem sido feitas com instrumentos simples: régua e lápis. Como aliás, as pacientes linhas de fuga da perspectiva renascentista. A anos-luz da era da computação gráfica, os trabalhos de Sacilotto são formal e poeticamente muito mais densos do que a maior parte dos experimentos que se tem feito com esses novos instrumentais cibernéticos, de potencial ainda em grande parte inexplorado na criação artística.

Outra vertente identificável nessas obras de Sacilotto é, de certo modo, a arte cinética. Embora o artista nunca tenha previsto mecanismos nem engrenagens para movimentar suas formas, e pur si muove (como diria Galileu), apesar disso elas se movem. Impelidas por um sofisticado motor virtual, que Sacilotto instala em nossas retinas no instante mesmo em que nos colocamos diante de um desses trabalhos.

Alguns exemplos nítidos de um motor gráfico em ação podem ser observados nas obras Abstrato 382 e Abstrato 383. Pequenos módulos triangulares agudos descrevem uma rotação completa sobre seus próprios eixos, dispostos em progressão horizontal e vertical. Essas rotações, por sua vez, produzem sugestões de “dobras” e curvas na superfície total da imagem. Ou, ainda, fixadas com insistência, geram a duplicidade fantasmática de suas formas.

Antes e acima de tudo, a obra gráfica de Sacilotto é um dicionário de formas puras e essenciais, regidas com rigor e ritmo impecáveis. Uma lição de serena eternidade. Para além do tempo e das atribulações, elas são como metrônomos, pulsos como os que movem as estrelas no universo e nos mandam feixes de pura luz. Música das esferas. E dos triângulos, retângulos e losangos. Preto e branco. Preto e branco. Preto e branco. Infinitos.