Sacilotto, o saber operário do concretismo
No ateliê de Luiz Sacilotto, em Santo André, reina uma ordem calma. Num canto do mezanino, estão quatro esculturas: três de sua lavra e uma reprodução da estátua de Lourenço de Médicis de Michelangelo. O braço dobrado do personagem contemplativa e o triângulo formado pela postura das pernas se alinham aos ângulos retos das peças do fundador da arte concreta paulista juntamente com Waldemar Cordeiro. Há uma coerência impecável na atitude do artista, algo que vem do saber artesanal, manual. Descubro mais um desdobramento da presença do precursor florentino: para além do lado formal, existe o pensamento ativo, prático. A história da arte brasileira deve afinar os instrumentos de análise para dar conta desta obra. Não adianta vê-la de cima para baixo. Sacilotto traz consigo a sedimentação do saber operário, um anti-elitismo tão cultivado que a única atitude honesta do estudioso é apurar a escuta. Note durante o transcorrer da entrevista como põe no devido lugar as polêmicas concretistas que enfeitavam os salões da moda.
Folha – Na exposição que a galeria Millan inaugura o expressionismo fica por conta de uma linha diagonal na “Natureza Morta” de 1948.
Sacilotto – Eu tinha levado uma figura, o retrato de Helena, minha mulher. No fundo do retrato havia uma conotação espacial, construída. Pelo espaço físico da mostra, era a única figura, ficava um pouco deslocada. Escolhi a “Natureza Morta” como amostragem de um início construtivo. Nesse período Waldemar Cordeiro veio para o Brasil. Quando foi observado que dentro de nossas figuras havia uma força construtiva, começou a surgir um interesse de conversar melhor sobre o assunto, projetar, ver o que estava acontecendo nas artes plásticas no mundo.
Folha – Como foi a irrupção de Waldemar Cordeiro Nesse ambiente?
Sacilotto – Ele era diferente, destacava-se do meio. Muito exigente, não tolerava injustiças, erros. Não deixava que ninguém tomasse a iniciativa, era o primeiro. Em geral sempre teve razão. Era estudioso. Tinha formação acadêmica, excelente formação em história da arte, aqui não tínhamos. Vivia-se aquela briguinha sem sentido de arte figurativa/arte abstrata, na qual não entrávamos.
Folha – Um quadro como o branco de 52, sem linha de horizonte, formas num espaço infinito não causava problemas na época?
Sacilotto – Absolutamente. Tinha bastante segurança do que vinha fazendo. Esses primeiros trabalhos, espaciais, se justificam também pela formação profissional. Meu primeiro aprendizado, mais artesanal , de 38 a 43, foi para professor de desenho e de escultura. Mas era uma transmissão para um trabalho mais industrial. Meu primeiro emprego foi como desenhista de letras. Na época as chamadas fontes tipográficas eram pobres. O desenho era feito todo a mão.
Folha – O trabalho de letrista já exige um grau de abstração. Por aí você já se distinguia dos colegas.
Sacilotto – Certo, havia rigor. Quando saía daquele rigor, era a figura, sobretudo a mulher. Foi o grande modelo. Desenhava, desenhava. Um ou outro objeto. Mas a figura humana impressionava mais: postura, gestos. Daí através de companheiros. “Você não quer trabalhar em arquitetura?” Claro que sim! Tinha excelentes possibilidades, pois naquela época não existia o mormógrafo. Era tudo desenhado a mão. Todo o trabalho de arquitetura me comovia enormemente. O rigor, a disciplina, o desenho ortogonal. Começaram a chegar novas informações. Estreita-se a amizade com Cordeiro. Trabalhando na arquitetura, tinha uma queda por Mondrian.
Folha – Na 1ª Bienal vem Max Bill, Sophie Tauber, Arp.
Sacilotto – E a gente se identifica imediatamente porque trabalham numa área que nos interessa particularmente. Entramos em contato com dois ou três companheiros que tinham idéias semelhantes às nossas. Por exemplo, Geraldo de Barros. Ou Lothar Charoux. Havia pintores que respeitávamos. Foi amadurecendo a idéia de fazer uma exposição de arte concreta, termo dos anos 30, Theo van Doesburg. Adotamos porque achávamos que nossa geometria era bem diferente do grupo de Flexor que era atuante em São Paulo. Eles tinham aquela liberdade… enquanto nós seguíamos uma arte rigorosa, modulada. A diferença com uma arte abstrata é que nesta podia se colocar ou se tirar certos elementos que não se destruía o quadro. Enquanto no nosso caso se tira um quadradinho, um vermelho, interrompe o circuito. É impossível acrescentar mais um quadrado, iria acabar com o ordenamento.
Folha – Houve repercussão negativa no Rio quando um dos membros do grupo paulista declarou que a ordem da cor não importava, mesmo uma permutação não alteraria a ordem formal.
Sacilotto – Não era um confronto com o Rio. Era um comentário que estava em pauta sem muita razão de ser. Acho que outros motivos mais sérios é que deveriam ser discutidos. Discute-se tanto lá por cima e a gente aqui embaixo procurando trabalhar em outra coisa. Eu fui serralheiro, projetista de esquadrias metálicas para poder subvencionar, sustentar a pintura. De dia na serralharia para fazer de noite a pintura.
Folha – Aracy Amaral observou também uma diferença básica entre o grupo do Rio e o de São Paulo, no que dizia respeito à situação social do artista. No Rio eles não precisavam ser profissionais em outras áreas, pois pertenciam a classes mais favorecidas.
Sacilotto – Eram gente que já vinha com uma base econômica razoável. No Rio de Janeiro, encaixavam-se como professor disto ou no jornal, numa coisa já ligada à área de trabalho. No nosso caso como Ivan Serpa, Aloísio Carvão. Aqui nunca tivemos oportunidade de trabalhar dentro da área. Charoux vendia linha.
Folha – Ele ficou todo tempo nessa situação?
Sacilotto – Até a aposentadoria. Geraldo de Barros era funcionário do Banco do Brasil. Waldemar Cordeiro praticava paisagismo, jardim de vanguarda, mas não era especificamente artista plástico. Féjer tinha uma pequena indústria de revestimento de acrílico. Trabalhei na Fichet, uma das maiores firmas do Brasil em matéria de esquadrias. Daí emancipei-me durante 11 anos, fiz uma serralharia. Volto para a Fichet onde me aposento em 77. Só em 78 tenho a primeira oportunidade na vida de viajar para a Europa.
Folha – Que artistas te impressionaram então na Europa?
Sacilotto – Em Amsterdã, Malévitch e Van Gogh. Outra coisa me impressionou foi a escala real. O encontro com a batalha de Paolo Uccello no Louvre me deixou estático.
Folha – Voltando ao Manifesto Ruptura (52), foi a afirmação sua como artista.
Sacilotto – O próprio nome da exposição já estava dizendo tudo. Ruptura significava também romper com a situação geral, a pseudo-arte , a arte acobertada pelas instituições. Éramos contra situações dentro do próprio Museu de Arte Moderna, contra o conformismo, não só do ponto de vista de postura teórica, pictórica, mas também social. Repercutiu bastante.
Folha – Vocês vendiam no Rio?
Sacilotto – Raríssimo. Mais em São Paulo.
Folha – E no seu caso?
Sacilotto – Dois quadros no Salão da Arte Moderna, na galeria Prestes Maia. Theon Spanudis disse: “Quando terminar a exposição, compro os dois.”
Folha – Você obteve o reconhecimento de Mário Pedrosa, que inclusive fez análise primorosa de seu quadro hoje no MAC.
Sacilotto – Ele me respeitava bastante. Sabia ver seriação, paralelas, persistência.
Folha – Criticamente você foi bem sustentado na época. Se houvesse correspondência em nível de mercado de arte, estaria numa posição vantajosa.
Sacilotto – Faltava um pouco mais de conhecimento da parte da crítica geral. A exceção era Pedrosa. A crítica não estava suficientemente alimentada.
Folha – E a disputa entre o concreto e o neo-concreto?
Sacilotto – Não há esse confronto. A polêmica entre Gullar e Cordeiro não é entre nós. Weissmann e a gente, Aloísio Carvão. Tivemos há poucos anos uma pequena mesa redonda na TVE do Rio de Janeiro em que houve até confraternização. Quando Aloísio Carvão viaja, sai a notícia: “Embarca amanhã para a Europa o artista neoconcreto”. Ele disse: “Que negócio é esse de neoconcreto? Sou concreto!”
Folha – Lendo hoje os depoimentos, fica-se com a impressão de antagonismos fortes como o de Cordeiro e Fiaminghi.
Sacilotto – Não estava em ideologia. Foi ressentimento de ordem pessoal. Depois dei a sugestão: por que não tentar reagrupar mesmo elementos que não fizeram parte do grupo Ruptura, mas que tinha uma certa relação? Fracaroli estava meio mondrianesco. Sempre tive excelente amizade com Willys e Barsotti. Com mais alguns elementos, foi feito uma coisa de caráter cooperativo. Alugamos um salão que seria permanente para nossa galeria chamada Novas Tendências. A primeira exposição foi em 63, depois existiram mais duas. Mas chegou um ponto onde houve saturação, não de ordem artística, mas de ordem econômica. Fechou exatamente em 64 quando a coisa entrou politicamente numa transformação.
Folha – Nesse momento, como a coisa passa para sua obra?
Sacilotto – Nesse período estava com a serralharia. Não tinha parado de produzir. Mas o impacto foi forte. Acontecem fatos que atingem a gente direto, companheiros nossos. Me envolvi emocionalmente. Obras minhas que estavam no Centro Cultural foram jogadas, levadas. Fiz uma estrutura totalmente anti-estrutura, um complexo de sucatas, de cantoneiras. Fiz um carrinho de bebê virado. Achei numa sucata um estofamento de caminhão com molas espirais todo arrebentado. Esta peça foi exposta numa das Bienais. Dali para a frente, não havia mais possibilidade de expor. Estava excessivamente vigiado.
Folha – Aí acontece um silêncio?
Sacilotto – Seis, sete anos paro de produzir só cuidando de minha vida profissional, familiar. No começo da década de 70 comecei a rever o que tinha feito. Senti uma necessidade enorme que todos os elementos pudessem criar mais movimento, não seriam estáticos, tão gestálticos. Comecei uma série de estudos, uma série de guaches que desencadeia muitos trabalhos. As rotações.
Folha – Só você e Charoux de seu grupo nos anos 60 não voltam à figuração. Cordeiro faz o popcreto, Maurício Nogueira Lima, os jogadores de futebol, Geraldo de Barros também experimenta trabalho com imagens.
Sacilotto – Era bem consciente. Para mim o real era exatamente o que estava fazendo. Aquela visão de realismo socialista é uma abstração que a gente conhece bem, quando aparece a perspectiva, toda essa evolução. O concretismo não é um ismo. A arte concreta é uma arte de projeto, de programação. Pode-se desenvolver até o infinito, quase como quando se descobre a perspectiva que abre um campo enorme.
Folha – E as esculturas? Você trabalha com formas vazadas. O vazio tem uma importância muito grande. O ar é parte substancial.
Sacilotto – O vazio é um componente. A origem, uma boa parte dessas esculturas vem de minha proposta: dentro de uma superfície plana através do corte e da dobra, transformar o espaço.
Folha – A partir de quando?
Sacilotto – Meados de 50.
Folha – Você trabalhava na Fichet? Qual a relação entre a escultura e o trabalho profissional?
Sacilotto – Depois do estágio na capital com Jacob Ruchti, trabalhei alguns meses com Villanovas Artigas. Alguém em Santo André precisava de gente. Encontrei um companheiro que era projetista na Fichet que me convidou. Antes de ir para lá, trabalhei como assistente de cenografia na Vera Cruz, na época de “Caiçara”, de “Terra Sempre Terra”. No envolvimento com a arquitetura que vem a parte escultural. Tenho os elementos da oficina na mão para corte e dobra, no caso um pouquinho de solda. O que significa cortar e dobrar uma superfície quadrada e circular e levar para uma outra dimensão? No conceito secular da escultura havia dois processos, um dos bloco de pedra onde você tira o material , outro seria o da modelagem por barro, onde você acrescenta. De nosso ponto de vista, não havia o que acrescentar ou tirar, era o próprio material, a chapa. Mas eu transformava através do corte e da dobra. Acho que foi minha contribuição. Os vazios têm a mesma atuação dos cheios.
Folha – É um vazio diferente do de Henry Moore, expressionista ainda. Aqui não há apoio naturalista.
Sacilotto – Henry Moore é uma extensão das coisas da natureza, as próprias figuras são bastante orgânicas, há uma elegância, uma beleza formal muito grande, mais é uma extensão dentro da natureza. A nossa não se liga a nada, é um objeto que foi projetado, programado para ser isso aí. No caso, um cubo montado com oito triângulos que de triângulos se transforma num cubo ali dentro que não existe.
Folha – O que você acha dessas exposições tipo Modernidade, que estabelecem um Tratado de Tordesilhas na arte brasileira determinando quais os artistas qualificados para representar o país?
Sacilotto – Naturalmente a gente ficou magoado. Quem não gostaria de participar de um evento lá no exterior? Mas a conjuntura foi daquele jeito que ninguém tem culpa. Da próxima vez vai ser do mesmo jeito. Também às vezes é um pouco falha nossa. Tem que haver uma participação maior, com todos os outros colegas. Faltou muita gente. É preciso criar um sistema mais democrático, mais abrangente. O que não convenceu ninguém foram as defesas de por que foi feito aquilo. Até a própria comitiva não se justificou. Foi lamentável.