Ruptura e continuidade
Luiz Sacilotto foi um dos signatários do manifesto de fundação do Grupo Ruptura (1952), que ele integrou ao lado de Waldemar Cordeiro, Geraldo de Barros, Lothar Charroux, Leopoldo Haar, Kazimir Fejer e Anatol Wladyslaw. No manifesto, o grupo rebela-se ao mesmo tempo contra a figuração naturalista e o “não-figurativismo hedonista”, propondo uma ruptura com a arte de passado. “Não há mais continuidade”, afirmam os signatários, com a arrogância típica dos jovens. Porém esta atitude inicial, provocativa, foi útil e necessária. Afinal, o Grupo Ruptura está na origem do movimento concretista (1956), que teve uma importância decisiva no processo de modernização e internacionalização da arte brasileira.
Encerrado o ciclo propriamente histórico do movimento, marcado por polêmicas que deram notável brilho intelectual na década de 50 e início de 60, o Concretismo continuou exercendo influência sobre a arte brasileira. Influência que não se restringiu ao campo da arte geométrica. Os concretistas lutaram contra a avalancha informalista, com sua retórica de gestos e matéria, da mesma maneira como ajudaram a própria figuração, contra a qual se bateram a se tornar mais rigorosa e despojada. Com efeito, mesmo artistas que não integraram o movimento, acabaram por absorver em suas obras, muitas das qualidades do Concretismo: objetividade, clareza de idéias, redução e simplificação dos meios plásticos como caminho para busca do essencial, levando-os a abandonar os excessos subjetivos e também matéricos. Inversamente, vencida a fase mais dogmática do movimento, caracterizada pela defesa intransigente de seus princípios ordenadores, os concretos renovaram pouco a pouco seu vocabulário formal, relativisando algumas questões – a cor, por exemplo – e propondo novas sínteses. Porém, a verdade inquestionável é esta: a influência do Concretismo, incluída aí a dissidência neoconcreta, foi muito além do campo plástico de da poesia. Da gráfica à publicidade, do design à arquitetura, do paisagismo ao urbanismo, da música popular à dança, todos estes segmentos foram beneficiados pela ação concretista, como de resto a própria crítica de arte.
A ruptura de 1952, reafirmada e aprofundada em 1956, é, na verdade, continuidade. As observações feitas anteriormente, indicam que o Concretismo estabeleceu um continuum de influências que repercutiram no conjunto da visualidade brasileira pós-1950. Ao apresentar a mostra internacional de arte concreta de Zurique, em 1960, por ele organizada, Max Bill destaca o fato de que, entre os novos artistas concretos, muitos vinham, precisamente, do Brasil. O concretismo teve o mérito, entre outros, de reafirmar uma das qualidades intrínsecas da arte brasileira, ontem como hoje: sua vontade de ordem, vontade que identificamos no Barroco mineiro, em nossa melhor arquitetura, na poesia, e até mesmo na criatividade popular.
A biografia e o currículo de Sacilotto são reveladores. De origem italiana, nasceu e vive até hoje em Santo André, no ABC paulista, berço de toda uma ideologia operária forjada das lutas sindicais. Se Volpi, Zanini e Rebolo, autodidatas antes de enfrentarem o cavalete, realizaram a chamada “pintura de liso”, Sacilotto realizou seus estudos de arte na Escola Profissional Masculina de São Paulo, que imagino ter sido uma espécie de Liceu de Artes e Ofícios. E durante muito tempo, atuou como desenhista técnico, programando cartões hollerith (herança visual presente nos trabalhos mais antigos desta exposição: 1952/1953) e projetou esquadrias de alumínio para produção industrial, em série. Isto explica também o interesse de Sacilotto pelos materiais industrializados – madeira, alumínio, esmalte, ferro, latão etc. – como suporte e matéria prima para suas criações artísticas. Luiz Sacilotto é uma das figuras centrais do Concretismo histórico no Brasil. Em muitas das concreções daquele período, foi um pioneiro e um desbravador de proposições que tiveram incontáveis desdobramentos em sua obra e na de outros artistas, dentro e fora do movimento. Mas nas décadas subsequentes, seguiu trabalhando com igual vigor criativo e rigor conceitual, buscando novas soluções para os problemas de sempre. Neste sentido, ouso afirmar que ele é o mais concreto entre os artistas concretos. Como afirmou Pignatari no texto citado, “o tempo o transformou nele mesmo”. Renovou-se sem abrir mão de sua fidelidade ao Concretismo, negando-se a “transformar o olho em carimbo”. Manteve-se, pois, fiel aos princípios vetores do Concretismo. Em sua obra, ontem como hoje, temos sempre a prevalência da estrutura sobre a narrativa, a adoção de ritmos numéricos simples, em ordem progressiva ou regressiva, que resultam em admiráveis estruturas de caráter ótico-cinético, serialização e repetição programada dos mesmos signos geométricos como base para um agenciamento multiforme e a ambigüidade espacial, que abre caminho para o aparecimento do tempo como movimento virtual. E, sobretudo a coerência interna, deixando claro que em todas em todas suas obras, há uma lei de desenvolvimento, que unifica todas suas propostas visuais. Cordeiro vê, em sua obra, a persistência de um caráter binário: cheios e vazios, fundo e suporte, côncavo e convexo, presença e ausência, positivo e negativo, e durante algum tempo, preto e branco. Dígitos concretos, acrescenta.
Apesar de recorrer sempre aos mesmos elementos, reais ou virtuais – quadrados, retângulos, triângulos, faixas verticais e horizontais, com diferentes espessuras e cores, que se apresentam isoladas ou agrupadas – as estruturas resultantes surpreendem por seu dinamismo visual e também por sua intrínseca monumentalidade. Surpreende, aliás, que Sacilotto nunca tenha sido convocado a realizar esculturas de grande porte, para locais públicos, como também obras murais. Concretista rigoroso, Sacilotto emprega um vocabulário geométrico deliberadamente restrito, com o claro propósito de se concentrar sempre, no essencial. Visualidade pura. E para isso se vale de uma gama muito variada de recursos – interrupções rítmicas, torsões, cortes, dobras, relevos, superposição de tramas lineares etc. Na aparente simplicidade ou contenção de sua obra, reside toda uma inteligência visual: há nela clareza, propriedade e transparência. Rigorosas e processuais, as obras aqui expostas não devem ser vistas, no entanto, como frias equações ou demonstrações de teoremas matemáticos, mas como verdadeiras obras de arte.