Cosme Velho Galeria de Arte – 23 de março a 3 de abril de 1982
O CARÁTER TRANSPESSOAL DA OBRA DE LUIZ SACILOTTO
Há artistas cuja função é a passiva receptividade daquilo que vem em suas mentes e a completa submissão na execução zelosa daquilo que lhes apareceu. Cézane é um deles. Ao jovem Gasquet ele dizia que a alma do artista devia ser como uma chapa fotográfica, extremamente sensibilizada pelos sofrimentos, alegrias, experiências e tentativas de toda uma vida, para poder captar a essência das coisas (extraí-las do caos que as cerca), e de qualquer intromissão da vontade subjetiva do artista, no processo da criação, só poderia dar resultados catastróficos (arbitrários).
Estas palavras lembram a “epoché” da fenomenologia (Husserl), a abstenção de qualquer interpretação e intromissão subjetiva, até que o fenômeno revela, pela redução do supérfluo e subjetivo, sua pura essência. Esta atitude passiva, de abstenção das interferências nossas e serviço desinteressado para a realização da obra do seu autônomo e sistemático desenvolvimento, é o oposto da atitude de um Van Gogh, cuja vitalidade vibrante e sofredora ele projetava expansivamente e apaixonadamente em tudo, e dizia que o tronco torto de uma árvore, curvada pelas violentas ventanias, lembrava-lhe toda uma tragédia humana. Duas atitudes temperamentais e caminhos completamente opostos, mas absolutamente válidos. A atitude de Cézane, este silencioso e disciplinado serviço para a “realização” na tela das essências que ele extraia pela meditação perpétua perante as manifestações caóticas do natural, esta atitude sacrificante das vontades subjetivas e dos excessos subjetivos, foi depois retomada por Mondrian que chegou pelo método da redução às fundamentais e cósmicas revelações da única verdade básica, das verticais e horizontais, seus perpétuos diálogos e tensões, sua perpétua vitalidade e dramas. Por esta razão, ele reduziu também o uso das cores às três primárias e os brancos, pretos e cinzas. Nesta linha de “epoché” subjetiva e completo serviço desinteressado à realização daquilo que apareceu, e aparentemente se desenrola sozinho, se insere também o trabalho de Luiz Sacilotto, um trabalho no qual o criador desaparece por completo atrás da obra emancipada e realizada.
Seu amadurecimento se deu após alguns anos de inatividade, quando seu caminho de disciplina ascética e impessoal foi traçado definitivamente, produzindo trabalhos bem diferentes dos anteriores, muito mais lúdicos, ingênuos com o frescor da juventude. Agora, ele chegou a uma severidade clássica, a uma concentração do essencial, a uma economia tão densa, que intensifica a vitalidade e dinâmica da obra, a uma pureza e singeleza que não conhece nada de supérfluo e arbitrário, e que poderíamos perfeitamente chamá-la de espiritualidade do essencial. Basta comparar a obra madura de Sacilotto com a vasta produtividade de um Vasarely, eis que este explora todos os exageros formais e colorísticos do geometrismo expressivo, para constatar a finura anímica, espiritualidade, severidade, pureza e singeleza essencialista das concreções do nosso artista.
O Brasil atravessa uma fase áurea da criatividade pictórica. Após a eclosão genial do construtivismo abstrato de Arnaldo Ferrari, temos os novos que continuam este caminho, mas com muito mais agressividade, violência dos coloridos, extremismos. Pensamos num Rubem Valentim (que começou pouco antes de Ferrari), em Valdeir Maciel, em Jandyra Waters. Arnaldo Ferrari, como também Volpi, conhece a maciez e ternura em sua obra. Não são tão violentos, atrevidos como os novos. Dos figurativos temos as sensíveis deformações e dissolvências orientais de um Fang, aluno de outro sutil oriental, de Takaoka, a pintura arquitetada de extremos requintes, de Eleonore Koch, o mundo fantástico de Odriozola, o mundo lúdico e abrupto de Gustavo Rosa. Dos abstratos, as formas densas de Tomie, as arcaicas de Niobe Xandó, as franciscanamentes despojadas de Mira Shendel. Dos coloristas, Volpi, Bonadei, o lírico Boese e o sensível Thomas Ianelli. Dos primitivos, o telurismo intenso de José Antonio da Silva. Dos antigos temos de mencionar a obra visionária – construtivismo figurativo – de Tarsila, entre 1923 e 1930, os três anos do excelente expressionismo de Anita Malfatti, a obra tão séria de Lazar Segall, as finuras de Guignard, o substancial retratismo e paisagismo de Pancetti, a audácia onírica de Ismael Nery, o construtivismo de Milton Dacosta, o excepcional colorido de Ernesto De Fiore. Dentro deste rico panorama, Sacilotto representa o ponto mais alto do concretismo brasileiro. Um concretismo sério, singelo, altamente espiritualizado. Suas obras da atualidade honrariam qualquer exposição internacional e qualquer museu do mundo civilizado. Esta é a obra transpessoal da sua criatividade, onde todas suas forças, inteligência, emotividade, impulsividade, são ao extremo e asceticamente disciplinadas ao serviço minucioso daquilo que apareceu, dos processos visuais quase autônomos, a realização da qual Cézane falava com tanto respeito religioso. Uma obra que provoca reverência e admiração pela sua finura e desenvolvimento sistemático. O fruto maduro de toda uma vida de sacrifício desinteressado, o fruto de uma opção definitiva do seu temperamento tão humano, humilde e ofertante ao serviço de algo superior a ele.